Saiba qual é a fruta típica do Cerrado que diminui risco de câncer e fortalece economia de povos tradicionais

Há 15 anos, regiões mais afastadas dos centros urbanos ainda lutavam contra a escassez energética. O conhecimento era transmitido através de gerações, a agricultura familiar dependia da sabedoria dos mais velhos. No entanto, em 2008, a inovação chegou no assentamento São Manoel, localizado no município de Anastácio (MS), a 194 km da capital. Uma equipe da Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer) foi até o local para estudar as frutas nativas do Cerrado.

Durante dois anos, a moradora Lúcia Lima, hoje com 65 anos, aprendeu junto a outros moradores como lidar com os produtos que colhiam. Foi assim que, ao longo dos anos, as frutinhas redondas e amarelas que caíam de altas palmeiras, e eram colhidas pela população apenas para consumo próprio, viraram fonte de renda.

Em 2023, são 11 mulheres que integram o grupo de produção sustentável do assentamento São Manoel, o qual Lúcia coordena. Elas trabalham com diversas frutas do cerrado, entre elas, a bocaiuva. Farinha, pão, bombom, paçoca, a lista de produtos que usam a frutinha amarela como matéria prima é longa.

“Hoje, nós temos a nossa agroindústria e nós trabalhamos lá. Da bocaiuva, a gente faz a coleta e depois a farinha. Da farinha, a gente transforma em pão, em bolo, em biscoito, bombons. A gente também hidrata a bocaiuva também e dá pra fazer suco, sorvete. A bocaiuva dá um sorvete delicioso. Fora que ela tem bastante nutriente. Ela é rica em vitaminas”, ressaltou Lúcia.

Além dos produtos serem vendidos em feiras, depois de prontos, eles alimentam dezenas de crianças e adolescentes que estudam nas escolas municipais de Anastácio. “Nós entregamos para a merenda escolar nas escolas do município, das creches e para algumas do estado também”, completou.

Pães de bocaiuva produzidos no assentamento São Manoel — Foto: Arquivo Pessoal

Bocaiuva, coquinho, macaúba, macaúva, coco-de-espinho. A fruta conhecida de diversas maneiras se estende desde o México até o Paraguai e pertence à família das palmeiras, as arecáceas. No Brasil, é possível encontrá-la desde o estado do Pará até São Paulo. As palmeiras de até 20 metros gostam das áreas abertas do Cerrado sul-mato-grossense.

As especialistas e professoras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Raquel Pires Campos e Juliana Rodrigues Donadon, são pesquisadoras que integram o programa “Valorização de Plantas Alimentícias do Cerrado e do Pantanal” da universidade.

De acordo com as professoras, a bocaiuva se adapta muito bem ao clima e solo de Mato Grosso do Sul, sendo possível encontrá-las em todo o estado. Na visão de Raquel, o cultivo da bocaiuva poderia ser ampliado pelo potencial alimentício que fornece e também seria possível a utilização em policultivo com outras espécies de menor porte, já que precisa de sol para ser produtiva.

Contudo, a bocaiuva apresenta características específicas que dificultam a produção agroindustrial, como a casca dura, polpa mucilaginosa, além de apresentar apenas cerca de 10% de lipídios, lhe conferindo pouca vida útil in natura. Desta forma, ainda estão sendo desenvolvidos equipamentos para processar o fruto em maior escala.

“A industrialização é uma grande oportunidade para dar escala e regularidade na oferta de produtos diferenciados, enriquecidos com bocaiuva. É grande aceitação do seu sabor também”, completou Raquel.

A professora Juliana também explica que o fruto apresenta grande potencial de uso como produto da sociobiodiversidade nas comunidades rurais. Ou seja, além de explorar a diversidade biológica, a fruta nativa se inter-relaciona com a diversidade dos povos e comunidades tradicionais.

“Temos visto o aumento do interesse na produção de vários produtos com bocaiuva. Por exemplo, o enriquecimento de pães produzidos pelas associações de mulheres em Taunay, em Aquidauana (MS). Bombons de bocaiuva tem sido produzidos pelo Grupo de Produção Sustentável do Assentamento São Manoel, em Anastácio. Também outros empreendimentos familiares em Miranda, Nioaque e Nova Andradina têm trabalhado com a bocaiuva e outros frutos nativos”, ressaltou.

A professora Raquel ainda explica que no setor alimentício e medicinal, a exploração comercial da bocaiuva poderia ser um diferencial para pequenos empreendimentos, com investimento na cadeia produtiva, formação de cooperativas e sistema de produção sustentáveis.

Ferramentas usadas para quebrar as castanhas no assentamento São Manoel. — Foto: Arquivo Pessoal

Valor comercial e nutricional

A especialista em Ciência e Tecnologia de Alimentos e professora da UFMS, Priscila Aiko Hiane Siroma, apontou ainda que o elevado aproveitamento da polpa e da amêndoa de bocaiuva sugere que a exploração sustentável do fruto pode ser economicamente viável. Por ser largamente distribuída de forma nativa na região pantaneira de Mato Grosso do Sul, se tornou uma alternativa econômica e um recurso de subsistência.

“Frutos da bocaiuva têm ocupado lugar de destaque no ecossistema do Cerrado e Pantanal, sendo já bastante comercializados em feiras e com grande aceitação popular. Esses frutos apresentam sabores e aromas sui generis (único em seu gênero) e elevados teores de açúcares, proteínas, vitaminas e sais minerais, constituindo assim um importante recurso de combate a desnutrição, aumentando a segurança alimentar e contribuindo para a diversificação e aumento do rendimento financeiro de pequenos agricultores e comunidades tradicionais”, disse.

A cada 100 gramas de bocaiuva, é possível ingerir cerca de 13 g de fibras. — Foto: Divulgação/Ecoa

Priscila relata que a polpa da bocaiuva apresenta elevado teor de fibras. O consumo de 100 gramas, por exemplo, fornece 55% das necessidades diárias de fibra alimentar – que são 25 g/dia – e cerca de 8,4 % das necessidades calóricas diárias de um adulto com uma dieta de 2.000 calorias.

Ou seja, cada 100 g de bocaiuva contém cerca de 13 g de fibra, cujo valor corresponde a metade das necessidades diárias que uma criança possui, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Confira quanto crianças devem ingerir de fibra diariamente, segundo a OMS:

  • Entre 1 a 3 anos: 19 g/dia;
  • Entre 4 e 8 anos: 25 g/dia;
  • Meninas entre 9 e 13 anos: 31 g/dia;
  • Meninos entre 9 e 18 anos: 26 g/dia.

Já para pessoas adultas, Priscila esclarece que 100 g de amêndoa suprem as necessidades de fibras preconizadas pela OMS.

“Ainda, a amêndoa apresenta elevada quantidade de proteínas e aminoácidos essenciais, tais como arginina, leucina, lisina, isoleucina, fenilalanina e tirosina, importantes para reconstrução celular e reparo tecidual”, completou a professora.

De acordo com a profissional, estudos científicos demonstram o grande potencial da bocaiuva para alimentos funcionais devido aos seus compostos bioativos com ação antioxidante (vitaminas C e E, compostos fenólicos, flavonóides e carotenóides).

“Sua inclusão na dieta também protege o organismo de diversas doenças crônicas associadas ao estresse oxidativo, uma redução do risco de doenças crônicas, como cardiovasculares e câncer, assim como prevenção de doenças associadas à desnutrição”, ressaltou.

Especialistas afirmam que a variação da cor da polpa da bocaiuva amplia as possibilidades de comercialização. — Foto: Divulgação/Marcelo Kuhlmann

Quanto aos teores de minerais, a amêndoa é rica em manganês, cobre, fósforo e magnésio, e a polpa rica em cobre e pró-vitamina A (β-caroteno). A bocaiuva representa excelente fonte de calorias por apresentar bom teor de óleo comestível, principalmente a partir das amêndoas.

Além disso, lembra Priscila, a vitamina “A” é um componente essencial da dieta, tornando sua disponibilidade na polpa um fator relevante para a saúde das populações rurais. Também contribuem com valores significativos de fibras, açúcares, proteínas, ácidos graxos, minerais e vitaminas.

Foi justamente pelo alto valor nutricional e comercial que fez Eliana Gomes Pedrosa e um grupo de 9 mulheres do assentamento Santa Lúcia investirem na produção de pratos derivados das frutas do Cerrado. Foi assim que surgiu o projeto Divino Sabor Santa Lúcia.

“No assentamento algumas mulheres produziam de forma individual a farinha que era comercializada em feiras e utilizadas em nossas casas. Mas aí conversamos e chegamos a conclusão que poderíamos enriquecer pratos e receitas com a bocaiuva. Então fizemos cursos onde fomos adaptando as receitas e hoje temos os bolos e pães enriquecidos com as farinhas e polpas da bocaiuva! O processo se dá desde a colheita dos frutos, a esterilização, a secagem, o descascamento e o despolpe. Todas as etapas da produção da farinha são manuais! Da palmeira à cozinha”, relatou Eliana.

Identidade visual da associação feita pelo Senar/MS e pão de bocaiuva produzida pela Divino Sabor. — Foto: Reprodução

Para ampliar e profissionalizar cada vez mais o comércio, a associação buscou atendimento e consultoria técnica do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural de Mato Grosso do Sul (Senar/MS). A técnica de Campo e Agroindústria, Emylia Gabriella Ferreira é responsável pela prestação de serviços e explica que a assistência consiste em um atendimento mensal com duração de 4h, por um período de 24 meses, podendo se estender por até 36 meses caso o produtor necessite.

“Trabalhamos com o produtor em sua agroindústria desde a parte da produção, como ajustes do processo, controle de qualidade das matérias primas, boas práticas na manipulação dos alimentos; até a parte de identidade visual, desenvolvimento da marca, adequações de rotulagem , tendências de embalagens e portfólio de produtos”, apontou.

Para atender e compreender melhor os produtores, a equipe da consultoria possui profissionais de diversos segmentos, como engenheiro civil e de alimentos, nutricionistas, veterinários, agrônomos, agentes de comercialização e técnico especialista. Tudo isso sem custos para os pequenos produtores.

A consultoria abrange ainda o setor da comercialização, apontando possíveis novos nichos de mercado, selos que agreguem valor, identidade geográfica, mercados futuros, além de ligar produtores que se complementam.

“Com investimentos futuros com certeza seria possível a exploração desse mercado. Não só para a bocaiuva, como para outros frutos e sementes do Cerrado, como kumbarú, jenipapo, guavira e jaracatiá. É um mercado ascendente, diversos produtos estão sendo desenvolvidos, como por exemplo cachaças, rapaduras, doces, pães e bolos. E tem obtido uma enorme aceitação, seja pela comunidade local, como pelo público relacionado ao turismo”, ressaltou a técnica.

Palmeiras de bocaiuva podem chegar a 20 metros. — Foto: Divulgação/Marcelo Kuhlmann

Da palmeira à cozinha

Os frutos são constituídos por aproximadamente 20% de casca, 40 % de polpa, 33 % de endocarpo e 7 % de amêndoa. Eles permanecem em “cachos” no topo das árvores até ficarem maduros, e isso dura quase o ano todo, de 9 a 10 meses. Em meados de setembro até janeiro, bolinhas amarelas caem ao solo já maduras.

Quando estão prontas para o consumo, a casca se desprende facilmente da polpa. Se quiser aumentar a vida útil da fruta, ela deve ser guardada em um ambiente refrigerado. Para produzir a farinha, no entanto, é necessário deixá-la desidratando em temperatura ambiente. Nada se descarta, até as castanhas podem ser aproveitadas para cocada e leite de amêndoas, ou ainda extração de óleo.

As pesquisadoras do programa de Valorização de Plantas Alimentícias do Cerrado e do Pantanal ensinam todo o processo prático do manejo da bocaiuva, através do Boletins Sabores. É indicado separar os frutos sadios dos frutos danificados, rachados, ou podres. Para ter certeza de quais estão apropriados para consumo, basta imergir todos na água, pois os coquinhos que boiam não estão bons para o consumo. Conforme o boletim, os catadores de frutos experientes indicam que os frutos bons são aqueles cujo ‘olho’ ainda tem uma coloração alaranjada.

 Onde guardar? As bocaiuvas podem ficar armazenadas até uma semana antes do processamento, mas para isso, devem ser guardadas em recipientes de boca larga, como bacias, baldes, caixas plásticas ou cubas, e sempre cobertos com uma tela. As pesquisadoras ressaltam que elas jamais devem ser deixadas em lugares fechados, senão, o processo de apodrecimento pode ser acelerado.

 Como limpar? A limpeza inicial deve ser realizada com água corrente para a retirada de terra e outras sujeiras. O próximo passo, é a sanitização. Basta colocar os frutos em um recipiente com água clorada, como indicado na tabela abaixo, e deixá-los imersos por 10 minutos em temperatura ambiente. “Produzir alimentos de boa qualidade exige atenção às técnicas de higienização”, reforçam as pesquisadoras.

Proporção adequada de água e cloro, ou água sanitária, que deve ser usada para higienizar corretamente os frutos — Foto: Gabriela Longo

 Como fazer polpa de bocaiuva? Depois de higienizados, a bocaiuva precisa ser descascada. Em seguida, basta remover a polpa. Em caso de comercialização, o fruto deve ser embalado em sacos plásticos a vácuo e identificados com o nome do produto, a data de fabricação e o prazo de validade. Quando congelada a 18 graus negativos, dura seis meses.

 Como fazer farinha de bocaiuva? Caso tenha congelado sua polpa e depois queira aproveitá-la para fazer farinha, é necessário deixá-la na geladeira por 24 horas para que ela descongele. Em seguida, as polpas devem ser espalhadas em quadros de telas tipo “peneira”, cobertas com tela “mosquiteira” e expostas ao sol. O armazenamento dela desidratada pode ser feito em caixas plásticas com tampas. A farinha é obtida por trituração em moinho (equipamento apropriado), ou em pilão, e depois peneirada.

Devido ao alto teor de gordura, esta farinha deve ser embalada a vácuo para evitar a rancificação. Neste formato, o prazo de validade do produto é de 90 dias.

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