O reino da submissão

Cleriston foi torturado e martirizado por não baixar a cabeça diante de um sistema de poder que exige obediência cega e absoluta

No início do ano, marquei uma aula sobre o romance Submissão, de Michel Houellebecq. No livro, o autor francês imagina a França governada por um presidente islâmico. Quando escolhi essa obra para a programação do ano, jamais poderia imaginar que a aula ocorreria pouco depois do maior massacre de judeus desde o Holocausto. Como sabem muito bem os meus sete leitores, eu não acredito em acasos. Eu precisava falar desse livro.

Faltando duas semanas para a aula sobre Submissão, tentei encontrar o livro em casa para relê-lo – e não consegui. Procurei nas estantes do escritório, na sala, no quarto, até no banheiro – e nada. Procurei no estúdio do BSM (para onde costumo trazer alguns livros) – e nada. Liguei para amigos e tentei saber se havia emprestado o livro a algum deles – e nada. Depois de vários dias de buscas infrutíferas, dei o livro por perdido. Fui até o sebo do meu amigo Marcelo, no centro da cidade, decidido a comprar um novo exemplar da obra de Houellebecq, mas, no caminho, resolvi dar um pulinho na Biblioteca Municipal, um dos lugares que eu mais amo em Londrina.

Digitei o nome Submissão no arquivo eletrônico da Biblioteca – e descobri que havia um exemplar da obra disponível. Fui até a prateleira de literatura francesa, localizei o livro e o abri. Para minha grande surpresa, havia na página de rosto do livro uma pequena ficha que informava: Doação de Paulo Briguet. Eu havia doado o livro à Biblioteca em 2017 e me esquecera!

Puxando pela memória, vejo que fiz a doação por um motivo principal: eu queria que mais pessoas tivessem acesso ao livro. Quando fechei a última página de Submissão, ficara com a sensação de que todos deveriam ler aquela história, pois ela evidentemente contava alguma coisa sobre nós.

Terminei a releitura de Submissão no dia em que morreu Cleriston Pereira da Cunha, o sonhador da Papuda. No livro de Houellebecq, o protagonista é François, um professor de literatura ateu e hedonista que acaba se convertendo ao Islã para garantir uma vida confortável sob o novo regime. É exatamente essa rendição que as ditaduras exigem de nós: se negarmos a nossa fé e os nossos princípios, não seremos incomodados pela polícia política. No caso de François, tudo ficou mais fácil, porque ele não acreditava em Deus e seus princípios não eram, digamos assim, suficientemente sólidos.

Cleriston era totalmente diferente de François: ele possuía uma fé e um conjunto de valores arraigados no seu próprio ser. Tão arraigados que o fortaleceram a ponto de viver 11 meses no inferno da Papuda mesmo com gravíssimos problemas de saúde. Se isso não é tortura, eu não sei como podemos usar essa palavra.

Cleriston foi torturado e martirizado por não baixar a cabeça diante de um sistema de poder que exige submissão absoluta. Enquanto ele era enterrado em sua cidade natal na Bahia, diante de sua família dilacerada e de seus amigos inconsoláveis, os donos do poder se compraziam em autopremiar-se com honrarias na demoníaca sede da República.

A morte de Cleriston foi um episódio tão forte que abalou a frágil aliança entre as facções que promoveram o golpe revolucionário de 2022, também conhecidas como PT e STF. Como em todas as revoluções – basta lembrar jacobinos e girondinos, bolcheviques e mencheviques, stalinistas e trotskistas – uma ala criminosa quer destruir a outra. Hoje, essa autofagia do poder é a nossa única esperança. Que a morte do pequeno cordeiro faça os lobos se entredevorarem.

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